Café Gelado

Mamãe disse que sorvete de café, chá gelado de café (mas não é o café um chá?), pudim de café ou outra coisa que não lembro o nome (coloco no título) curava coração-partido. Dito isto: os epicuristas pregavam o desinteresse como medida profilática ao sofrimento; e não sei se para evitar o sofrimento ou o quê, um certo moço era bastante desinteressado em geral, com os dias, com as pessoas… Só queria terminar o ensino médio, viver um dia por vez, sem chateação, sem conflitos. Não se sabe como, nem o porquê, mas ele cativou uma moça um tanto diferente dele… Ela já sabia na graduação o tema do doutorado na Argentina, fazia cronogramas detalhadíssimos e era engajada politicamente, ou seja, todo dia uma briga.  

Eles foram se conhecendo como acontece em geral nas músicas do Renato, fazendo a gente se perguntar: será? Passaram meses juntos se conhecendo mais e mais, até que aconteceu de a moça ter de completar um semestre na França. Ela não tinha medo de avião, mas tinha medo de morrer, e por saber que existe tanta gente azarada no mundo sem água para lavar as mãos ou papinha para dar aos irmãos, decidiu contar tudo o que sentia para ele. 

   Como não era abestado (apesar do gênero masculino ser péssimo para entender sinais) não foi pego de supetão…Só que a história dos dois ficou por aí mesmo, no platonismo mas cacete. Ela viajou, estudou, voltou e os dois nem um selinho tinham trocado. Nesse meio tempo o moço entra na faculdade e a moça começa a perder o interesse na tal relação. O moço sentiu esse desgaste, e se abriu mais. Se beijaram, se abraçaram e até andaram de mãos dadas uma vez no centro da cidade! E como se nem Deus quisesse esses dois juntos, mandando primeiro a viagem à França, mandava agora uma pandemia; durante o período de quarentena ela disse o quanto sentia falta dele (e ela sentiu muitas saudades pela distância, e ciúmes quando ele não lhe respondia ligeiro, mas também se sentiu insuficiente porque o moço começou a aprender alemão e ela “não queria ficar para trás”; estudou alemão, além de continuar seu francês e inglês), ela tocou flauta e escreveu poesia; num dia sufocante disse: eu te amo. 

Tudo isso num caminho de sentido único, com as poucas migalhas que voltavam sendo entregues por pombos; porém, as migalhas lhe preenchiam o coração, o que não é idiossincrático, já que era um coração tão profundo. 

    Quando acabou a quarentena (e ainda que magoada por todas as faltas), desejava tão somente deitar-se nos braços dele sob o sol quente, e suar…e chorar de alegria (aquele choro próprio dos reencontros). E ele? O moço? Estava nos braços de uma intercambista alemã, e se tinha saudade dela, da moça, o sentimento tinha se perdido no labirinto das memórias. 

    A moça após ver a cena, murchou, e o perfume que ela exalava, sob o sol quente, tornou-se odor. Em casa, por desconhecer os feitiços da terrinha, foi logo colocando o café na chaleira, a chaleira no fogão e acendeu o fogo. E ela? A moça? Estava apagada, como a lua sem o sol. 

6 comentários sobre “Café Gelado

  1. Uau, sua escrita revela a melancolia dos desencontros que a vida proporciona. Pra essa moça que se entristeceu, um dia tudo isso vai se deslocar no tempo, esmaecer, deverá desbotar, desimportar, e ela brilhará novamente.

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