Por: “Caio Marques“
Leia o capítulo anterior: “Natal sem luz – Parte I“
Enzo estava vendo um pronunciamento oficial do governo pela TV, no momento em que todas as luzes se apagaram. Foi um susto daqueles, tudo escuro em plena noite e de súbito tudo silenciou-se.
Respirou, o menos barulhento possível.
Seu pai quebrou aquele clima perguntando se todos estavam bem. Sua mãe respondeu, sua irmã também e ele por fim. Alguém soltou um pum rasgado logo em seguida, daqueles que parecem um saco de xilito sendo estourado. Silêncio, e alguém ri engasgado, dando espaço para que todos possam gargalhar.
Aquele momento de descontração familiar foi quebrado por três batidas fortes na porta de madeira que dava para a rua. Ninguém soltou um piu, até que o pai de Enzo perguntou quem era. Mais três batidas na porta e nada de ninguém responder. A mãe de Enzo disse, então: -Tem boca não, diabo?
Uma voz grossa respondeu: -É a polícia, dona Chiquinha.
Dona Chiquinha levantou-se para abrir e foi logo dizendo: -E essa luz, hein, menino?
Era o tio de Enzo, que começou: -É a chibata desse governo, que a gente paga e paga, esfola e esfola, e no fim não tem nem luz. Cadê todo mundo?
-Tão nas peidaria mais horrível do mundo – respondeu o pai de Enzo.
-E é bom. Mas menino, tá quente aqui, viu?
-Visse – disse a irmã de Enzo – Quero saber é das velas, vou barruar em tudo até achar o banheiro.
-Vixe, já descobri quem tava apodrecendo a atmosfera – falou Dona Chiquinha – Mas pode acender vela não, fia, que eu tô pelada todinha.
-Diabeisso – disse o pai de Enzo enquanto balançava a cabeça negativamente. O tio de Enzo aproveitou para mugir, insinuando coisas nada gentis.
-A gente pode botar as cadeiras na calçada e ficar conversando igual antigamente? – questionou Enzo.
-Quer que os cheira-cola roubem a gente? Parece que é doido. – respondeu o pai de Enzo, e a irmã dele reforçou – Cheio de pirangueiro uma hora dessa. – e o tio dela – Só menino bom.
Enzo defendeu-se: – Bem teus amigos. Tá quente demais aqui.
– Se o inferno existe, Fortaleza é a sauna do diabo. – disse sua mãe – Já dizia a Mazé, mulher do seu Priquito.
Neste momento todos se voltaram para as luzes que começaram a aparecer pelas janelas, como labaredas de São João. Em seguida murmurinhos, palavras abafadas, gritos de muita gente. Tudo aconteceu muito rápido, sem dar a mente o prazer de refletir. A janela de vidro da sala estourou, mas as grades de ferro impediram que invadissem. Começou o diabo duma gritaria dentro de casa que se somou à gritaria do lado de fora que deixou tudo ensurdecedor.
A porta foi derrubada e Enzo pode distinguir algumas figuras. Seu pai e sua irmã correndo em direção aos invasores, seu tio e sua mãe parados, de pé, diferente dele que estava sentado. Seu pai foi o primeiro a tombar com uma faca no meio do bucho, sua irmã levou umas pancadas na cabeça e caiu também, deixando duas pessoas rasgadas por suas unhas. Seu tio foi derrubado por uma machadada bem no topo da cabeça, enquanto sua mãe era levada aos gritos para a cozinha e continuou gritando por alguns minutos, seus gritos em harmonia com os risos de alguns homens.
Uma mulher franzina parou de frente a Enzo, com uma espécie de tocha na mão, como que avaliando-o. Deixou-o, levando consigo a luz que restava naquela casa.
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