Ninguém quer saber do futuro

Para anunciar o teu oráculo,
Por que me enviaste à cidade,
Onde habitam os cegos eternos,
Se tenho o espírito iluminado?
Porque me levaste a ver
O que não me é concedido mudar?
O determinado tem de acontecer,
O temido tem de se aproximar.
De que serve levantar o véu,
Onde a tragédia se ameaça?
A vida vivemo-la no erro,
E o conhecimento é a morte.
Leva, oh!, leva a triste claridade,
Leva de mim o seu brilho sangrento!
Terrível é ser arauto fatal
Do teu conhecimento.
A minha cegueira, dá-me de novo
E o seu sentido alegre, obscuro.
Não mais cantei canções felizes
Desde a tua voz asseguro.
Deste-me o futuro de presente,
Mas privaste-me do momento,

(Cassandra, Friedrich Schiller, 1802)

Cassandra morava no Brasil há alguns anos quando a pandemia do coronavírus estourou. Não era a primeira vez que ela via algo do tipo acontecer – afinal, quando se vive 3000 anos você presencia alguns “fins do mundo” aqui e ali -, assim como não era a primeira vez que perdia os cabelos porque não lhe escutavam – a estupidez humana era a única constante que ela conhecia na vida. Mas era a primeira vez que via tão generalizada a negação das fontes confiáveis. 

Desde que se recusou a dormir com o deus Apolo, seu mestre na arte da clarividência, Cassandra foi amaldiçoada: seria a mais acurada profetisa, mas ninguém acreditaria no que ela dissesse. Tudo isso porque não quis dormir com ele. (Algumas coisas realmente não mudam.). Então, há quase um milênio ela sabia sobre o futuro do seu presente, não importa onde estivesse vivendo (e olhe que já viveu em quase todo pedaço de terra nesse planeta), mas foram raríssimas as vezes em que conseguiu evitar um desastre. Quase sempre acontecia a mesma coisa: ela falava para um transeunte que aquele vulcão dormente há cem anos iria acordar justo naquele dia, a pessoa lhe dizia “tá doida, mulher?”, e seguia com seu dia, até que o vulcão acordava e todo mundo naquela localidade virava cinzas. Ou alguma variação disso. 

Dessa vez não era diferente. 

O que era diferente, no entanto, era que parecia que não estava sozinha. Não, não era como se ela tivesse encontrado outra clarividente quase-milenar vivendo no mesmo bairro e perdendo um pouco do juízo a cada dia, era maior do que isso. Era como se, de repente, várias pessoas entendessem o que ela passou durante todos esses anos: saber o que vai acontecer, tentar avisar para se salvar e salvar outras pessoas, e ser ignorada. Ela conseguiu notar isso logo no início da pandemia, quando alguns de seus amigos conversavam sobre como seus pais não acreditavam na letalidade do vírus, diziam que era pânico criado pela oposição política, que era apenas uma gripe mais forte, não havia necessidade de tanta precaução. Cassandra já havia lidado com pessoas teimosas durante esses anos, claro, como não haveria?, mas não nessa escala! Não espalhadas por um país inteiro! Como todas elas diziam a mesma coisa? Que maldição foi essa? Quem a lançou?

Como parte do seu disfarce para se assimilar em um lugar novo, Cassandra evitava se intrometer muito em questões locais, ou mesmo se tornar muito reconhecível (o que poderia causar problemas quando percebessem que ela não envelhecia nem um pouco), mas aquela teimosia generalizada lhe intrigou muito. E havia quem dissesse que eram principalmente os mais velhos que falavam aquelas coisas ou se recusavam a ficar em casa, mas ela via pessoas jovens (menos de 40 anos, não menos de 2500) fazendo as mesmas coisas! 

E ela já sabia do que ia acontecer, dia a dia, semana a semana, mês a mês, sabia coisas que os cientistas mais especialistas não podiam prever, e olhe que as previsões deles eram certeiras. Cassandra já havia se resignado, há tantos anos, que ninguém lhe ouviria, mas não conseguia entender como ninguém ouvia os cientistas, que desde que a ciência surgiu, e ela viu bem de perto quando isso aconteceu, nunca eram questionados. Claro, não era a primeira vez que se duvidava da gravidade de uma doença, mas era a primeira vez que Cassandra via um esforço deliberado de se espalhar informações que mais direcionavam as pessoas à morte. 

Houve um momento em que baixou a guarda, algo raro de acontecer. Bateu na porta de um vizinho com quem havia falado poucas vezes, e lhe disse para entrar em contato com seu filho, um rapaz que havia se desentendido com a família por uma razão tão insignificante – mas o que não é insignificante quando se é testemunha do moinho do tempo? Como ela já esperava, o vizinho não lhe deu ouvidos, e ainda lhe disse para não se meter na vida da sua família. Pouco tempo depois, não foi necessário ninguém vir lhe informar que o rapaz havia morrido por infecção pelo vírus, mesmo sendo jovem e saudável.

Ela usou máscara e carregou gel na bolsa mais como uma forma de se misturar mesmo, pois sabia que não seria vítima do vírus, como já havia entendido algumas centenas de anos antes. Tentou conversar com conhecidos reticentes aqui e ali, consolou amigos que perderam pessoas queridas. E prestou uma silenciosa solidariedade a todos aqueles que, pela primeira vez em 3000 anos, tinham alguma dimensão do que era saber do futuro, gritar para evitar que ele aconteça, e ser desacreditado. Cassandra, ao menos, sabia da razão para que isso acontecesse com ela, mas e os seus amigos? Ninguém os ouvia porque acreditavam em pessoas que diziam, de propósito, que quem falava sobre cuidados contra o coronavírus fazia parte de um plano de doutrinação e desvirtuação dos bons costumes.

Todos os dias ela acorda sentindo ainda os últimos vestígios da escuridão que ronda os seus sonhos, o lugar onde suas visões mais costumam  se manifestar. E todos os dias acorda sabendo que, infelizmente, não estar sozinha não é tão bom quanto ela pensava que seria.

3 comentários sobre “Ninguém quer saber do futuro

  1. Num isolamento tudo se agrava e, diferente da Cassandra, nós estamos suscetíveis a sermos vitimados pelo vírus. A angústia da protagonista se abate sobre nós somada ao medo da morte de nós mesmos, de alguém querido e até da continuidade desenfreada do crescimento de vítimas que estamos tendo que ver todos os dias nos jornais. Ana Luiza, sua escrita é atual, lúdica e traz consigo um tanto de melancolia, o desespero do grito que se quer gritar, cujo o som na cidade não se ouve. O caminho narrativo da crônica leva o leitor a sentir em minúcia os detalhes, mesmo nas entrelinhas do texto pude sentir o tormento do vizinho que se arrepende de não ter ouvido Cassandra e dos filhos que tentam convencer seus pais da gravidade da situação.

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